Segurança Pública: Vamos discutir uma proposta de mudança?
A segurança pública é um dos grandes desafios do Brasil hoje. Avanços alcançados nas últimas décadas na redução da desigualdade e na ampliação das políticas sociais contrastam com crescentes indicadores de violência e imobilismo no que diz respeito às políticas de segurança pública. A maior incidência de crimes violentos, tanto nos grandes centros urbanos como no interior do país, fazem da segurança uma preocupação crescente da população e dos dirigentes. Ainda que a inadequação do atual modelo seja clara, a ausência de um debate mais profundo tem se mostrado um grande empecilho à formulação de propostas alternativas.
A transformação da situação da segurança pública no país passa necessariamente pelo debate a respeito de nossas polícias. De maneira geral, podemos afirmar que os serviços hoje prestados pelas instituições são de qualidade insatisfatória. Frequentes denúncias sobre atuação com emprego de violência desproporcional e corrupção afetam a confiança da população nas forças policiais e acabam por reforçar esse quadro violento. Ao mesmo tempo, a capacidade investigativa tem se mostrado muitodeficiente, com baixíssimas taxas de elucidação para todos os crimes, mesmo os mais graves, contra a vida.
Os policiais, em sua maioria, também são vítimas do atual modelo, sendo obrigados a trabalhar em condições precárias, sem equipamentos adequados, expondo sua vida a risco. Sem valorização, são colocados em situação de forte estresse emocional, sem amparo adequado, sofrendo inclusive com o estigma que há em torno da profissão.Não é por acaso que a maioria dos policiais é a favor de mudanças profundas no atual modelo.
O nosso objetivo é fazer ressoar esse debate, envolvendo o máximo de atores possíveis, das forças policiais a entidades da sociedade civil. A organização das polícias, que não sofreu alterações significativas na Constituição de 1988, é determinada em seu artigo 144. Existe uma série de Propostas de Emendas à Constituição (PEC) tratando de mudanças nesse artigo. Para que possamos estruturar o debate em cima de propostas concretas, escolhemos debater a PEC 51, de 2013. Essa PEC foi escolhida por ser a mais abrangente entre as propostas de reforma policial, tocando em uma série de temas sensíveis e decisivos dentro do debate.
O texto abaixo, de autoria do antropólogo Luiz Eduardo Soares, apresenta de forma detalhada um diagnóstico da segurança pública no país e a necessidade das reformas previstas pela PEC 51. MUDAMOS propõe uma discussão qualificada sobre os temas trazidos pela PEC 51. Há espaço para concordâncias, discordâncias e criação de novas propostas. Vamos debater?
Sobre MUDAMOS e a PEC-51
Luiz Eduardo Soares
A situação da segurança pública no Brasil é tão dramática, que ninguém está satisfeito: nem a sociedade, nem os policiais. 56 mil pessoas são assassinadas por ano, no país. São 29 vítimas por 100 mil habitantes. A maioria das vítimas são jovens pobres e negros, moradores de territórios socialmente vulneráveis. Entretanto, as investigações não esclarecem mais do que 8% desses crimes, que são os mais graves, porque violam o bem mais valioso: a vida. Esse patamar de homicídios dolosos vem se repetindo ao longo dos anos, o que mostra que não temos conseguido preveni-los. Apesar de 92% de impunidade, no que se refere aos homicídios dolosos, nosso país tem a quarta população penitenciária do mundo (607 mil presos, em 2014, ou 300 por 100 mil habitantes) e a segunda taxa de crescimento mais elevada. Esses dados mostram que alguma coisa está profundamente errada. Prendemos muito, mas negligenciamos a violência à qual deveríamos dedicar atenção prioritária. As prisões são verdadeiras masmorras medievais –nas palavras do próprio ministro da Justiça–, que desrespeitam a Lei de Execuções Penais, impondo aos presos um pesado excedente de pena. Não surpreende que o nível de reincidência se aproxime de 80%. E o que é pior, milhares estão lá sem ter agido com violência, estar armados ou manter vínculos com organizações criminosas: apenas vendiam substâncias ilícitas. Se não tinham vínculos, o sistema penitenciário providenciará para que se teçam. Em resumo: estamos contratando violência futura, quando imaginamos a estar prevenindo.
Policiais matam e morrem demais. Execuções extra-judiciais multiplicam-se, na medida em que se difunde a crença de que estamos em uma guerra e que a missão do policial é combater o inimigo. Segmentos numerosos envolvem-se em corrupção, degradando a imagem das instituições e liquidando a confiança da sociedade que lhes seria imprescindível. Por outro lado, centenas de milhares de policiais trabalham em condições degradantes, recebendo salários indignos, submetidos a jornadas de trabalho desumanas, pressionados ao extremo, experimentando sérios distúrbios psíquicos. Estão carentes de apoio, formação e treinamento adequados, e equipamento compatível com os riscos envolvidos em suas atividades. Quase todas as PMs mantêm regimes disciplinares que autorizam prisões administrativas de policiais segundo o arbítrio dos superiores hierárquicos, sem o devido processo legal. O grau de exploração do trabalhador policial atinge este ponto porque o estatuto militar proibe a sindicalização de seus profissionais. Por outro lado, a maioria está insatisfeita com as estruturas organizacionais de suas instituições, as quais, por não se ordenarem em carreira única, geram duas polícias em cada uma: a PM dos praças e a PM dos oficiais; a polícia civil dos agentes (investigadores, detetives, escrivães, inspetores, peritos) e a polícia civil dos delegados. Além disso, a grande maioria dos profissionais de segurança pública gostaria que fosse abolida a divisão do ciclo do trabalho policial, que hoje separa a polícia que investiga (a polícia civil) da polícia cuja tarefa é ostensiva e preventiva (a polícia militar). A polícia federal constitui um caso à parte e a polícia rodoviária federal também apresenta algumas peculiaridades. Simplificadamente, pode-se dizer que a PF cumpre ciclo completo e a PRF restringe-se às funções ostensivo-preventivas.
Acumulam-se, na sociedade e nas polícias, críticas ao modelo policial e, mais amplamente, à arquitetura institucional da segurança pública, isto é, ao modo pelo qual a Constituição determina que sejam organizados o conjunto das instituições que atuam na área e suas inter-relações, assim como a distribuição de responsabilidades. A União participa pouco, salvo nas crises. Os municípios são praticamente esquecidos, no artigo 144 da Constituição. O peso maior cai sobre os ombros dos estados, os quais são muito diferentes, uma vez que o Brasil é um país continental. As necessidades do estado do Amazonas, no campo da segurança pública, poderiam ser atendidas por um modelo policial que servisse bem ao estado de São Paulo?
Como se vê, são muitas as questões. Além de numerosas, são interligadas. Ao contrário das polícias, que não são interligadas, não formam um sistema, e este é um dos problemas chave. A experiência internacional, as eventuais boas práticas nacionais e o bom senso indicam que elas deveriam compor um sistema, o qual estimulasse a cooperação e não a rivalidade, o reforço mútuo em vez da competição, a integração e não a fragmentação, que dispersa energia, conhecimento e recursos. Por isso, soluções tópicas e melhorias aqui e ali não estariam à altura da complexidade do desafio. Seriam gambiarras, puxadinhos institucionais, que apenas postergariam mudanças substanciais. Estas, infelizmente, têm sido adiadas desde a promulgação da Constiuição, em 1988. Naquela oportunidade, o Brasil foi passado a limpo. As mais diversas áreas foram redesenhadas, a partir de novos parâmetros, para se adaptarem ao Estado democrático de direito, então instaurado. A segurança pública, entretanto, permaneceu à sombra, como o patinho feio da história. Por motivos políticos, foi deixada de lado. A correlação de forças ainda não permitia avanços. Temia-se o poder do regime autoritário, que, mesmo superado, mantinha seus tentáculos no meio político, em várias instituições e na sociedade. Sendo a segurança uma área especialmente sensível para os militares, os constituintes optaram por não promover modificações e o país herdou a arquitetura institucional que a ditadura organizara para atender aos seus objetivos. A Constituição assimilou e consagrou este legado, no artigo 144. Hoje, os problemas políticos que havia no período da transição não existem mais, no entanto o país ainda está à espera de uma iniciativa de transformação que, finalmente, estenda ao campo da segurança a transição democrática, alterando o artigo 144.
Para definir novos rumos e formar uma coalizão ampla o suficiente para conferir força política ao esforço de mudança, é preciso ouvir os policiais de todas as esferas, os estudiosos e a sociedade civil, buscando construir um consenso mínimo em torno das reformas básicas. A PEC-51, apresentada pelo senador Lindbergh Farias em outubro de 2013, seguiu e continua a seguir este caminho: resultou de mais de uma década de consultas, diálogos e negociações. Nem por isso, expressa unanimidade. Não há unanimidade em matérias complexas, naturalmente controversas e polêmicas. Entretanto, parte de alguns diagnósticos e propõe alguns caminhos de solução que talvez sejam capazes de obter adesão ampla o suficiente para impulsionar as transformações cada vez mais urgentes. Esta plataforma de debate tem o propósito de testar esta hipótese e de colher subsídios para aperfeiçoar as propostas contempladas na PEC-51. Por outro lado, o bom debate requer abertura dos participantes para rever seus próprios pontos de vista e ser convencidos por outros argumentos. Assim, os proponentes da PEC-51 concluirão este processo dialógico satisfeitos se descobrirem que estão errados e que há um outro conjunto de propostas melhor e mais apto a conquistar o consenso mínimo, indispensável para sustentar uma ampla coalizão reformista. Nesse caso, dispomo-nos a somar forças e apoiar as melhores ideias. O importante será salvar a segurança pública da inércia política. Acreditamos que este seja o caminho para a construção do futuro com mais democracia, participação, transparência e compromisso com a equidade e a justiça.
Resta enfatizar o seguinte ponto: a segurança pública envolve múltiplas dimensões–desde a economia à cultura, passando pelas mais diversas questões sociais, como o racismo, as desigualdades, as deficiências no acesso à cidadania plena, que inclui a escolaridade, as iniquidades– e requer, portanto, políticas públicas intersetoriais e convergentes. A própria violência policial, por exemplo, não se manteria sem a tácita autorização concedida por boa parte da sociedade. Em outras palavras, segurança não é problema exclusivamente policial ou da Justiça criminal. Isso não significa que as polícias e a estrutura institucional da segurança pública não cumpram papel muito importante. O repertório do debate é mais amplo do que o espectro temático coberto pela discussão que pretendemos travar nesta plataforma virtual. Porém, esta tem sido uma armadilha perigosa, porque, em nome da complexidade e da diversidade dos fatores relevantes, nunca o foco das atenções se dirige à problemática policial, o que tem provocado sua exclusão da agenda prioritária nacional e a consequente conservação do status quo. Por outro lado, quando discutem segurança, a sociedade, os políticos e a mídia tendem a fazê-lo em momentos de crise, limitando suas propostas ao endurecimento das penas.
Chegou a hora das questões policiais. É urgente inscrevê-las no centro da agenda pública. Lançamos aqui a plataforma virtual destinada a debater uma proposta de mudança, a PEC-51. Será uma forma objetiva de difundir a discussão, estimular a participação e, graças à focalização de temas específicos, qualificar o debate. Se não alcançarmos um consenso mínimo, pelo menos contribuiremos para que as posições se enriqueçam e os pontos de divergência se identifiquem com precisão, facilitando o diálogo e abrindo caminho para a negociação das mudanças possíveis.
Nota de esclarecimento: Esta proposta não é de responsabilidade do ITS Rio, seus diretores e funcionários.
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