POLÍCIA FEDERAL
ORGULHO NACIONAL


Começou mal a reforma da Previdência

19/01/2003

Começou mal a reforma da Previdência A previdência pública foi criada para amparar o futuro das pessoas na velhice. No Brasil, o modelo foi tão desvirtuado que já compromete o futuro dos velhos, dos jovens e do próprio país. O rombo da previdência governamental é a causa principal do desequilíbrio das contas públicas. Esse rombo previdenciário aumenta a cada ano e já se tornou um fator incontrolável. Sem uma reforma drástica do sistema previdenciário, a União terá seu caixa cada vez mais arrombado. Para poder rolar sua dívida com o mercado financeiro, o governo precisará oferecer juros na estratosfera, como já vem fazendo há anos, e todo mundo sabe qual é o resultado dessa política insana. O governo não tem recursos para investir, precisa sangrar o país com impostos crescentes e, no fim da linha, o crescimento do Brasil fica travado porque o Tesouro Nacional está sofrendo de inanição financeira. Mesmo assim, muitas forças se mexeram nos últimos dias contra a reforma da Previdência anunciada pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

Militares querem ficar fora da reforma para não perder privilégios adquiridos em anos passados. Juízes também exigem tratamento especial. Afinal, o Judiciário concede as aposentadorias mais ricas no país, e os togados pretendem manter essas "conquistas" de sua categoria. Policiais, professores, pessoal da área da saúde – todos querem continuar ganhando mais na aposentadoria que a maioria dos brasileiros. Ou seja, todos querem a reforma da Previdência, desde que seja no contracheque dos outros. Se o governo de Lula não conseguir abafar essas exigências setoriais, a barragem da reforma será arrombada e toda boa intenção terminará sem produzir resultado algum, como ocorreu no governo Fernando Henrique Cardoso. FHC não conseguiu reformar a Previdência porque cedeu à pressão corporativa de setores organizados do funcionalismo público.

Reunião convocada pelo Palácio do Planalto para que o ministro da Previdência, Ricardo Berzoini, explicasse ao ministro da Defesa, José Viegas, que o governo deseja manter o regime especial de aposentadoria para os militares. Berzoini havia defendido um sistema único de aposentadorias, incluindo as Forças Armadas. A Presidência ordenou que ele recuasse. A seguir, as reações do presidente do STF, ministro Marco Aurélio, que criticou pesadamente a proposta do governo, ainda nem sequer apresentada, e do presidente da CUT, João Felício, que pediu mais sensatez na discussão.

"Os militares realmente necessitam de uma previdência diferenciada porque vivem situações diferentes das vividas pelos civis."
José Viegas, ministro da Defesa




"Se quem usa farda e toga merece aposentadoria diferenciada, quem usa britadeira, giz e bisturi também merece. Ou se faz uma reforma justa ou vamos continuar tendo uma previdência injusta. Defendo previdência única e universal para todos."
João Felício, presidente da CUT
Antonio Milena

"Não chego a dizer que as propostas são demagógicas, mas você só pode fazer isso quando vira a mesa e há uma revolução do poder constituinte originário."
Marco Aurélio Mello, presidente do Supremo Tribunal Federal, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo Ana Araujo



No ano passado, o déficit da Previdência chegou a impensáveis 70 bilhões de reais. Para 2003, fala-se em 80 bi. Por outro lado, o sistema é uma fábrica de iniqüidades. Deveria distribuir renda, ao assegurar um ganho mínimo a quem pagou pelo direito, mas em vez disso só faz concentrá-la. Numa espécie de Robin Hood às avessas, a Previdência arrecada dinheiro dos mais pobres e o transforma em rendimentos polpudos entregues nas mãos da elite formada pelos inativos do serviço público. Quem passou a vida inteira na iniciativa privada é obrigado a sobreviver com um rendimento médio de 340 reais por mês quando se aposenta. Já quem trabalhou como servidor público ganha aposentadoria média de 2.200 reais se serviu ao governo federal, 7.000 reais se pertenceu aos quadros do Legislativo e 7.300 reais se é egresso do Poder Judiciário. O apartheid previdenciário que dá pouco a muitos e muito a poucos paga aos aposentados do Brasil privado apenas uma fração do último salário que recebiam quando trabalhavam. Mas dá aos inativos do Brasil estatal proventos mensais superiores aos do último contracheque. Lula prometeu combater esse modelo, mas seu governo levou uma invertida na primeira rodada da luta.

Mal o ministro da Previdência, Ricardo Berzoini, anunciou a criação de um caixa único para todos os aposentados, sejam da iniciativa privada, sejam do serviço público, com o estabelecimento de um teto de ganho para todos, ao redor de 1 500 reais, viu-se que a coisa não seria fácil. Berzoini propôs a adoção de um sistema pelo qual juízes, militares, diplomatas, policiais e promotores não teriam mais direito à aposentadoria integral e passariam a receber apenas o tal teto do INSS, no máximo. Os grupos de pressão representados pelos funcionários públicos se mexeram e deixaram claro que vão fazer de tudo para garantir a manutenção dos privilégios. Os primeiros a gritar foram os militares. "A atividade militar é diferente de qualquer outra. O presidente Lula, quando era candidato, veio ao Clube Militar e entendeu essas particularidades", comentou o general aposentado Luiz Gonzaga Lessa, presidente do Clube Militar. "Qualquer mudança trará instabilidade militar, e isso não é coisa boa para nenhum governo", afirmou, num ultrapassado tom ameaçador. Depois, reagiram os magistrados por meio da destacada voz do presidente do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello. "Não chego a dizer que são propostas demagógicas, mas você só pode fazer isso quando vira a mesa e há uma revolução do poder constituinte originário", declarou Mello em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. "Quando o servidor opta pela carreira pública, começa a contribuir para ter no futuro certos direitos. Indaga-se: iniciada essa relação jurídica, é legítimo, é aceitável que ela seja alterada por uma das partes?", pergunta o ministro.

Na opinião do general e do ministro, mexer com a previdência das carreiras beneficiadas com a aposentadoria integral é quebrar um direito adquirido, termo usado de forma freqüente para defender vantagens individuais. Esquecem-se os dois que uma sociedade só evolui quando elimina direitos adquiridos de alguns poucos em benefício da coletividade. É o princípio democrático basilar segundo o qual o interesse comum se sobrepõe ao interesse individual. Guardadas as devidas proporções, o debate se assemelha ao travado após a assinatura pela princesa Isabel da Lei Áurea, que aboliu a escravidão e com ela cassou o direito adquirido dos brancos de possuir escravos. Hoje, não há dúvida de que a abolição foi um belo momento da história. Mas, naquele tempo, houve muita queixa da elite escravagista. Os fazendeiros argumentavam que os escravos eram sua propriedade, garantida pela Constituição ( veja reportagem).

Sentindo-se pressionado, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva recuou. Por ordem do Palácio do Planalto, Berzoini adaptou seu discurso. Antes da confusão, o ministro havia declarado o seguinte: "Não gostaria de tratar nenhum grupo de maneira diferente. Todos os setores deveriam ter o mesmo tratamento previdenciário". Após a reação adversa dos lobbies, Berzoini capitulou. "Sou ministro do presidente Lula. O presidente acha que os militares devem ser tratados de maneira específica", afirmou. Por determinação da Presidência, Berzoini ainda convidou o ministro da Defesa, José Viegas, e um grupo de chefes militares, para explicar que não mexeria nas vantagens da turma da farda. Na quinta-feira, o ministro da Casa Civil, José Dirceu, interveio na discussão e reafirmou o desejo do governo de incluir os militares na reforma. O que se viu na semana passada pode ser um movimento tático, parte de uma jogada política habilidosa para voltar a atacar adiante. Mas pode ser exatamente o contrário, indício de que, se a reforma vier, será no estilo meia-sola, para não ferir suscetibilidades de setores fortes do funcionalismo.

Pedro Rubens

Aposentados rurais em Guariba, no interior de São Paulo: 5 milhões recebem benefícios sem ter contribuído



A previdência existe em 150 países e calcula-se que a maior parte deles conviva com algum grau de desencaixe atuarial. Ou seja, feitas as contas, o volume de dinheiro arrecadado não será suficiente para honrar o pagamento das aposentadorias e pensões no futuro. Os estudos mais recentes falam num buraco mundial conjunto da ordem de 30 trilhões de dólares. Mais cedo ou mais tarde a hora da verdade chegará para todos. Especialistas dizem que os inativos estão consumindo, hoje, o dinheiro da aposentadoria de seus filhos, amanhã. Para evitarem o pior, os países se mexem há anos. O Chile foi o primeiro país do Ocidente a tomar providências e resolveu privatizar a previdência há vinte anos. Na sua esteira, sete países latino-americanos implementaram modelo assemelhado: Peru, Colômbia, Argentina, Uruguai, Bolívia, México e El Salvador. Em alguns, como o Brasil, a oposição política, comandada na época pelo PT, inviabilizou as transformações. Na Austrália, o sistema de previdência foi aberto ao capital privado há quase quinze anos. A mudança foi conseguida com o apoio dos sindicatos de trabalhadores. Até a Suécia, a primeira nação do mundo a criar um sistema de previdência oficial de cobertura nacional, considerada modelo por excelência do Estado do bem-estar social, iniciou um processo de privatização de parte de seu sistema previdenciário.

Nenhum desses países, no entanto, convive ou conviveu com um sistema estatal de aposentadorias e pensões semelhante ao que vigora no Brasil. Sobre ele, o ex-ministro Roberto Campos escreveu certa vez: "Nossa Previdência não satisfaz nenhum dos objetivos de um bom sistema: assegurar aposentadorias decentes, transferir recursos para os mais pobres e acumular poupanças para alavancagem do desenvolvimento". Para onde quer que se olhe, encontram-se distorções. Uma das mais espetaculares é a velocidade com que sobe o déficit no sistema. Em 1995, situava-se na casa dos 19 bilhões de reais. No ano passado, somando-se o prejuízo do setor público e o do INSS, o buraco quase quadruplicou. Na última década, o prejuízo acumulado pela Previdência passa de 350 bilhões de reais. Se nada for feito, os especialistas acreditam que nos próximos anos todo o dinheiro dos impostos será devorado com a folha de pessoal ativo e inativo. Não sobrará nada para a construção de estradas, escolas e hospitais. A máquina pública entrará em colapso.

Geyson Magno/Ag. Lumiar

O ex-professor Marcondes: uma aposentadoria de 20 000 reais


Outra distorção é a forma de administração dos recursos da Previdência, feita segundo o chamado sistema de repartição. Por ele, as contribuições recolhidas pelos que estão na ativa num mês garantem o pagamento dos aposentados daquele mesmo mês. Quem quiser guardar algum dinheiro para sustentar a própria aposentadoria, que procure uma empresa privada. O sistema de repartição só funcionava bem antigamente, quando muitos trabalhavam para alimentar um fundo que sustentava poucos aposentados. Até a década de 60, para cada brasileiro aposentado havia outros sete trabalhando. Hoje, essa relação é inferior a dois para um. Isso acontece porque a população está envelhecendo e há cada vez mais aposentados para receber e menos trabalhadores para contribuir. Se as regras não mudarem, dentro de algumas décadas haverá mais aposentados do que contribuintes. A saída, nesse caso, é implementar o regime de capitalização, pelo qual cada trabalhador financia seu próprio futuro e recebe de acordo com suas contribuições. É fundamental migrar de um sistema para o outro. O desafio dos técnicos consiste em arrumar dinheiro para financiar as atuais aposentadorias enquanto os trabalhadores depositam suas economias numa conta individual que vá bancar seu amanhã. Fala-se num buraco adicional superior a 200% do produto interno bruto.

Nenhuma distorção consegue ser mais grave do que permitir que pessoas recebam proventos previdenciários elevados apenas porque trabalharam para o Estado. Existem 3 milhões de inativos do serviço público, contra 20 milhões de aposentados do INSS. Esse pequeno grupo de funcionários estatais fica com metade do dinheiro destinado às aposentadorias e é responsável por 75% do rombo no caixa da Previdência. Tudo fica mais grave quando se sabe que o dinheiro que recebem não tem lastro. É sacado a descoberto, gerando déficit. O sistema gera prejuízos em todos os escalões. A pedido de VEJA, a consultoria Watson Wyatt, especializada em previdência, calculou o tamanho do prejuízo médio que os profissionais de algumas carreiras do governo provocam quando se aposentam (veja quadro abaixo).

O tamanho do prejuízo

A pedido de VEJA, a consultoria Watson Wyatt, especializada em previdência, calculou quanto ganham, em média, os aposentados de três carreiras públicas. Calculou ainda quanto eles deveriam receber mensalmente, no máximo, segundo o que recolheram por mês à Previdência, respeitados os limites atuariais. O estudo estimou o prejuízo total que cada aposentado gera para o Tesouro e para o contribuinte durante cerca de vinte anos, tempo médio de recebimento da aposentadoria




Tome-se o caso de um coronel da reserva do Exército, que ganha cerca de 6.500 reais a título de aposentadoria. Durante sua vida profissional ativa, esse coronel recolhe para a Previdência o suficiente para ter direito a uma aposentadoria de 3.000 reais. A diferença se dá porque o militar recolhe para a Previdência uma quantia em dinheiro que é proporcional ao soldo do momento, não ao provento que deseja receber ao se aposentar. Ocorre o desencaixe atuarial. De acordo com a consultoria, o coronel produz um prejuízo anual para o sistema previdenciário da ordem de 44.000 reais. Posto que o militar vá receber aposentadoria por vinte anos, provocará um prejuízo acumulado de 573 000 reais. Aplicando a mesma conta a um juiz federal, ele deveria receber cerca de 5.000 reais por mês de aposentadoria com base em seus recolhimentos, mas embolsa mais de 14.000 reais. Em vinte anos de aposentadoria, o juiz provoca um prejuízo de 1,6 milhão de reais. Ou seja, os contribuintes comuns financiam para cada juiz federal aposentado algo como cinco apartamentos de três quartos. Não é justo. O prejuízo total em vinte anos, calculado pela consultoria, não é uma multiplicação simples da despesa anual em função de particularidades da aritmética previdenciária.

Quando chega a aposentadoria, a maioria dos brasileiros corta despesas ou procura um bico para completar o orçamento. Afinal, o INSS paga em média apenas 340 reais por mês para 20 milhões de aposentados. Na base, há 14 milhões de velhinhos vivendo com apenas um salário mínimo. Só 1% dos aposentados tem a felicidade de receber pelo teto. O último estudo realizado pelo IBGE mostrou que no Brasil 30% dos aposentados trabalham. Essa é a realidade do INSS. Já para muitos servidores públicos, a aposentadoria é a melhor fase da vida, pelo menos do ponto de vista financeiro. O provento médio dos aposentados pelo governo do Estado de São Paulo é 20% maior que o salário do pessoal da ativa. No governo federal, os aposentados possuem bons vencimentos. Existem cerca de 1 000 servidores recebendo acima de 20 000 reais por mês – o que equivale ao dobro do salário do presidente da República. O ex-professor Marcondes Rosa de Souza, da Universidade Federal do Ceará, é um deles. Seu salário deveria ser algo como 5.500 reais, mas Souza conquistou na Justiça o direito de ganhar 20 000 reais por mês. Alegou para isso que foi perseguido durante o regime militar e depois dele.

O sistema oficial de previdência foi inventado em 1923 e desde então vem sendo dilapidado. Juscelino Kubitschek tomou 6 bilhões da Previdência para construir Brasília. Os militares usaram dinheiro da Previdência para fazer a ponte Rio–Niterói e a Transamazônica. O dinheiro jamais foi devolvido. Com a promulgação da Constituição de 1988, o INSS levou o último grande baque. Sob a justificativa de que estavam fazendo justiça social, os constituintes aprovaram uma lei concedendo o benefício da aposentadoria a todos os brasileiros com mais de 60 anos, no caso das mulheres, e de 65 anos, para os homens, mesmo aos que nunca contribuíram. Mais de 5 milhões de ex-agricultores passaram a receber aposentadoria, e o aumento de despesas foi da ordem de 15 bilhões de reais por ano. Decisões desse tipo podem soar como um gesto de grandeza social, mas a Previdência deve ser um sistema blindado, do qual só participe quem paga. Os demais podem ser assistidos por programas sociais devidamente listados no Orçamento.

O governo já reduziu ao máximo seus investimentos e elevou a carga tributária a um patamar sufocante. Não tem mais de onde tirar dinheiro para pagar suas contas. É preciso tomar montanhas de dinheiro dos bancos para fechar o Orçamento. Essa máquina está puxando o Brasil para trás. Na última década, o governo concretizou grandes reformas com o objetivo de tapar os buracos por onde escoava dinheiro público. O Estado encolheu com a venda de estatais ineficientes e a demissão de servidores. Também se equipou melhor para cobrar impostos e punir administradores irresponsáveis. São medidas que auxiliaram no controle da inflação, mas foram insuficientes para colocar o país no caminho do desenvolvimento. É vital enfrentar agora os privilégios da Previdência, a reforma das reformas, a mãe de todas as reformas. Sem ela, o Brasil sai do mapa financeiro mundial.

A novela do direito adquirido


A Constituição brasileira trata de uma série de direitos consensuais, como o direito à inviolabilidade de correspondência, o direito de consciência e crença, o direito à liberdade de pensamento, o direito de maternidade, de defesa num processo judicial e, o maior de todos, o direito à vida. Ninguém discute se alguém pode ou não dispor de tais prerrogativas. Mas existe um direito que sempre dá confusão: o adquirido. Ele é citado no artigo 5º da Constituição, em que se lê que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". Há mais de 2.000 anos, a irretroatividade da lei já era uma regra jurídica, citada em discursos do célebre orador romano Cícero. E, no Brasil, o assunto é tema da Constituição desde o Império. Ocorre que os constituintes de 1988 estabeleceram um dispositivo geral segundo o qual leis futuras não podem negar às pessoas benefícios concedidos por leis passadas. Ficou pendente a explicação precisa sobre em que momento fica definido que o benefício é um direito inquestionável.

A incerteza legal acaba atrapalhando a discussão sobre a reforma da Previdência. Os servidores públicos alegam que, como eles têm direito a receber a título de aposentadoria um valor igual ao do último contracheque, as regras não poderiam ser mudadas. Segundo as entidades de classe, qualquer redução em seus vencimentos seria um atentado ao princípio sagrado. A maior parte dos juristas concorda com o argumento quando o que está em jogo é a irredutibilidade dos proventos. Ou seja, não se pode tocar nas aposentadorias dos servidores. Mas e no caso dos funcionários públicos que ainda estão trabalhando, faz sentido alegar que já têm direito à aposentadoria integral?

Na semana passada, o ministro Marco Aurélio Mello alimentou o debate em uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. Ele argumentou que os servidores da ativa têm direito a receber aposentadoria pelo salário integral, da mesma forma que os já aposentados. Segundo observou, "que diferença há entre um servidor que está a um dia da aposentadoria e um que já está há dez anos no serviço público?". É o que os servidores estão chamando de "direito expectado", uma expressão que não está prevista na lei. A equipe do presidente Lula vem dizendo que respeitará direitos adquiridos. Segundo o ministro Ricardo Berzoini, da Previdência, o governo não pretende propor mudanças para os inativos. Já para os servidores da ativa a proposta é criar um modelo misto. Até o dia da aprovação da reforma, vale a regra atual. A partir daí, vigora o que for estabelecido. Nesse caso, um servidor que esteja no meio da carreira quando for aprovada a reforma terá metade da aposentadoria computada pelo regime antigo e a outra metade pelo regime novo.

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, lembra que o Brasil já enfrentou situação parecida no passado. Por quase 400 anos a escravidão foi tranqüilamente admitida no país. As pessoas tinham direito a ter escravos e podiam negociá-los livremente. Quando se começou a falar em acabar com a escravidão, a proposta chocou uma parte da elite brasileira. "O direito à posse de escravos já foi um direito adquirido", diz Mendes. Os escravos representavam boa parte do patrimônio dos fazendeiros. Libertá-los implicava enormes prejuízos. Custou 65 anos para que fosse aprovada a Lei Áurea, que acabou de vez com a escravidão no país. Marcou um dos momentos mais importantes de nossa história e mostrou que a sociedade evoluiu no momento em que o direito de um grupo foi substituído por outro, de alcance mais amplo. "Se a lei não fosse mudada, ainda haveria escravidão", diz o ministro. Hoje, é motivo de vergonha o fato de o Brasil ter sido o último país do mundo a acabar com a escravidão. No futuro, a lembrança do país que abandona 23 milhões de miseráveis e sustenta privilégios a servidores públicos poderá produzir a mesma indignação que se tem ao lembrar o Brasil escravocrata. Pode ser que as próximas gerações também se envergonhem.






Com reportagem de Luís Henrique
Amaral e Suzana Barelli


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