Quem se importa com Pedrinhas?
08/07/2015
As violações no presídio do Maranhão ainda são frequentes
Pedro** deixava transparecer sua pouca idade nos olhos assustados. Dividia com outros presos um pedaço de espaço da cela superlotada no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão. Ele é acusado de tentar roubar um celular. Crime sem violência, cuja pena, caso seja condenado, não inclui a privação de liberdade. Pedro não tem família no estado e não sabia dizer se alguém além daqueles muros fora avisado de sua detenção. Tem epilepsia e fala com dificuldade. Sem remédios nem cuidados, sofre convulsões frequentes. Nessas horas seus colegas de cela batem nas grades pedindo socorro. Os carcereiros o separam dos demais, o deitam no chão e jogam água. Esperam até ele recobrar os sentidos e o devolvem à companhia dos demais.
Na cela ao lado há outro preso com epilepsia. Considera-se “sortudo” por ter remédios, embora a validade do medicamento tenha vencido em agosto do ano passado. Pedro e seus companheiros só saem das celas fétidas e úmidas durante uma hora e meia por semana. De 168 horas, passam 166 trancafiados.
Pedrinhas, famosa pela violência das rebeliões, continua um dos maiores exemplos de como a brutalidade do sistema prisional brasileiro é pensada, premeditada e calcada na sistemática violação de direitos. Em 9 e 10 de junho, como representantes das entidades peticionárias das Medidas Provisórias concedidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA no fim de 2014, voltamos aos corredores da penitenciária. O objetivo dessas inspeções periódicas é verificar se o Estado obedece às determinações da Corte a respeito da proteção eficaz da vida e da integridade de quem cumpre pena no lugar. A conclusão inquietante e inquestionável: a Constituição e as normas internacionais de direitos humanos continuam peças de ficção por lá.
Na unidade apelidada de triagem, onde os presos recém-chegados permanecem por até 30 dias sem qualquer condição de higiene, saúde, convivência familiar, assistência jurídica e psicológica, encontramos Jonathan**, de 26 anos, preso cerca de 24 horas antes pela Polícia Militar. Não só: Jonathan diz ter sido torturado brutalmente no momento de sua prisão e também na delegacia. Respirava com grande dificuldade por causa dos chutes e pontapés que deixaram marcas em seu tórax. Também mancava. Uma de suas pernas estava inchada por conta de um tiro de bala de borracha desferido pelos policiais à queima-roupa, quando já estava detido. Nas costas, mais marcas evidentes, gritantes, de tortura. O jovem informa que havia passado por exames no Instituto Médico Legal, cujo objetivo deve ser justamente verificar se o preso fora vítima de abusos de agentes estatais. A médica, conta, mal encostou nele e nada recomendou, mesmo depois de testemunhar sua condição. Na triagem, Jonathan aguardava sem remédios, curativos ou tratamento. Chorou ao falar do filho que deixou em casa.
Dinei** tem 36 anos, mas aparenta bem mais. Está em outra cela superlotada, igualmente suja, sem ventilação e sem colchões suficientes. O preso tem nítidos problemas de saúde mental. Não está sob tratamento psiquiátrico e, na verdade, nem deveria estar ali. Ele não faz quase nada durante as infinitas horas trancado. Só aguarda. Espera o dia em que alguém fará algo a seu favor, ainda que apenas garantir o cumprimento da lei.
No presídio, não há oferta de trabalho ou educação, direitos constitucionais sagrados, fundamentais na remição da pena e na reinserção do preso na sociedade. Não há assistência jurídica, apesar das dezenas de casos de penas vencidas, com direito à progressão de regime ou de presos provisórios há anos à espera de julgamento. Há fundamentalmente gente que não deveria estar presa.
A lista de ausências é longa. Falta assistência médica e psicológica. Somam-se aos casos mencionados as histórias de tuberculose, hérnia, asma, além de braços e punhos quebrados, que em vão aguardam cirurgia. Tampouco se oferece comida adequada. As “quentinhas” são produzidas às 4 da manhã e, ao chegarem ao complexo em caminhões sem refrigeração, por volta do meio-dia, estão azedas, intragáveis. Não são raros os relatos de fome e sede. Inexiste o fornecimento de água potável. Ratos e baratas passeiam tranquilamente. O calor e a umidade são insuportáveis.
Em comparação a 2013, quando vídeos de pedaços de corpos emergiram de Pedrinhas e o Brasil e o mundo se espantaram com a violência no complexo, o número de mortos diminuiu. Em 2015, até o momento da nossa visita, foram cinco. O grau das violações continua, porém, estratosférico e deveria envergonhar a todos.
Não à toa, a violência contra os internos foi denunciada ao mecanismo internacional de proteção aos direitos humanos em 2013, e em novembro do ano seguinte o Brasil foi alvo de Medidas Provisórias da Corte Interamericana de Direitos Humanos, instância jurídica do sistema regional de direitos humanos nas Américas. As medidas obrigam o País a garantir a proteção da vida e a integridade de todos aqueles privados de liberdade no complexo, assim como de qualquer indivíduo que se encontre nas unidades, incluídos agentes penitenciários, funcionários e visitantes.
A situação dos agentes e funcionários merece destaque. A quase totalidade dos funcionários das unidades continua vinculada a empresas terceirizadas, que faturam milhões de reais com a desgraça humana. São companhias que ofertam mão de obra mal paga, menos qualificada e mal treinada para um estado que prefere delegar, em lugar de assumir, a responsabilidade sobre a execução penal.
Em uma das unidades visitadas, um dos chamados “monitores” (agentes penitenciários contratados) denuncia atraso nos salários. Segundo ele, os funcionários não recebem treinamento e chegam despreparados para a função. Ele próprio só teria sido informado de que atuaria diretamente com os detentos no primeiro dia de trabalho. O nome do empregador parece uma macabra ironia: Civiliza. Como prova de que os “monitores” estão lá para civilizar, muitos carregam na cintura uma enorme lata de gás de pimenta, clara demonstração da mentalidade embrutecida e da violência institucionalizada na política penitenciária maranhense.
Outra firma contratada é a Atlântica. De acordo com informações divulgadas na mídia, pertence a a um empresário que seria sócio em outros negócios de indivíduos ligados à família Sarney.
Os integrantes da Atlântica usam coturnos, calças, camisas de manga comprida e coletes pretos. Seus rostos são cobertos por uma touca ninja, o que impede a identificação e a responsabilização em eventuais casos de tortura ou maus-tratos. Carregam armas de grosso calibre com munição de elastômero (balas de borracha). Uma parte é autorizada a portar armamentos com balas de verdade. Várias das denúncias de maus-tratos dos detentos são dirigidas a funcionários da empresa. Durante a inspeção, foram encontradas cápsulas de bala de borracha no chão, além de inúmeras marcas de tiro na parede.
Em um episódio recente, para reprimir presos que gritavam, funcionários teriam disparado indiscriminadamente em direção ao interior das celas. Na tentativa de se proteger, um preso pisou nos restos de um vaso sanitário quebrado, o que lhe causou grave ferimento, registrado por nós. No prelúdio de uma grave infecção, seus pés descalços, com os pontos de uma cirurgia recém-feita, pisavam nus o chão sujo e úmido do local.
Não bastasse o verdadeiro mosaico de brutalidade, violações e privações, importa relembrar que uma das determinações da Corte Interamericana diz respeito à necessária investigação das mortes ocorridas no complexo nos últimos anos e às indenizações devidas às famílias dos mortos sob a tutela do Estado. Nenhuma dessas duas providências está perto de ser minimante satisfatória.
Um último exemplo reafirma o descalabro da situação do complexo. Durante a inspeção em uma das unidades, conversávamos com presos que, indignados, denunciavam as condições precárias. Na sequência, após ouvir relatos de maus-tratos, o diretor da unidade se aproximou e, aos berros, sem se intimidar com a presença do nosso grupo, apontou o dedo para os detentos e afirmou que deveriam “tomar cuidado” com o que diziam, pois “amanhã” iríamos embora e ele continuaria diretor.
O amanhã de Pedrinhas é de responsabilidade de todos, e as instâncias internacionais de proteção aos direitos humanos sabem disso. Falta às autoridades locais e federais assumir de vez as suas atribuições, sem gritos ou ameaças.
*Joisiane Gamba integra a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos; Luís Antonio Pedrosa, a Comissão de Direitos Humanos da OAB/MA; Rafael Custódio é da Conectas Direitos Humanos; e Sandra Carvalho, da Justiça Global. **Nomes fictícios para preservar a integridade dos depoentes.
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