Portaria 523/89 x atividades de inteligência na PF »
É imperioso que a FENAPEF aproveite o atual momento e leve em audiência pública as questões das novas atribuições que se acumularam para os AEPs (agentes, escrivães e papiloscopistas policiais federais), desde a edição da Portaria nº 523/89-MPOG, a qual deve ser revisada e reestruturada, para revestir de legalidade as características e atribuições desses cargos.
Principalmente, no que concerne àquelas atividades desenvolvidas pelas “unidades de inteligência policial”, mediante o uso de interceptação telefônica e de demais sinais (fax, internet etc), a qual historicamente foram desenvolvidas pelos próprios AEPs, em acompanhamento aos meios de comunicação empregados pelas organizações criminosas, que fazem constante uso das novas tecnologias (telefonia fixa, móvel e via satélite, internet etc). Obviamente, o ordenamento jurídico também tem que se fazer presente com novas e atualizadas medidas.
A referida Portaria nº 523/89-MPOG se mostra arcaica, pois ainda trata das atividades exercidas por agentes, escrivães e papiloscopistas de Polícia Federal como sendo de nível médio. Quando de sua publicação, inexistia ou não se vislumbrava as atuais atribuições de complexidade e responsabilidade hoje executadas pelos respectivos cargos, mais precisamente aquelas acumuladas e que dizem respeito à função comumente denominada de “analista de inteligência policial”. Também não previa ou fazia qualquer menção às atividades de “análise” de inteligência policial, uma vez que a única referência que as polícias brasileiras tinham à época era a de inteligência de Estado, originária do período da ditadura militar.
Esta assertiva é observada na ordem cronológica de alguns eventos, necessariamente a partir do ano de 1989, que remonta a edição de tal PORTARIA. Somente após uma década é que foi publicada a primeira doutrina de inteligência policial, em novembro de 1999, posterior à publicação da Instrução Normativa nº 007/97-DG/DPF, de 02/10/1997, que instituiu normas de coordenação e controle das Operações de Inteligência Policial (OIPs) e estabeleceu procedimentos a serem adotados no âmbito do Departamento de Polícia Federal, nos seguintes termos:
Art. 1º - Instituir normas de coordenação e controle das Operações de Inteligência Policial (OIPs) no âmbito do Departamento de Polícia Federal e estabelecer procedimentos a serem adotados pelas Unidades Operacionais, observadas as prescrições contidas; na Lei 9.296, de 24 de julho de 1996, sob a orientação técnico-normativa dos Órgãos diretamente subordinados à Coordenação Central de Polícia do DPF..
A norma foi em consequência e atendeu parcialmente o disposto na Lei nº 9.034/1.995, conhecida como a LEI DO CRIME ORGANIZADO (Art. 4º - Os órgãos da polícia judiciária estruturarão setores e equipes de policiais especializados no combate à ação praticada por organizações criminosas.), e na Lei nº 9.296/96, que dispõe sobre a interceptação telefônica e do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática, além de outras leis e normas subsequentes.
Vale relembrar outro fato histórico de grande importância, que revolucionou o sistema de telefonia mundial. No Brasil, o primeiro modelo de aparelho celular foi lançado, concomitantemente, nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, em meados de 1990, um ano após a edição da Portaria nº 523/89-MPOG.
Destaque-se o acelerado desenvolvimento tecnológico, principalmente nos meios de comunicação (telefonia móvel, via satélite ou não, internet etc), que ainda se encontra em constante evolução e expansão. Logicamente, as organizações criminosas, como fruto maléfico de nossa sociedade, também fazem uso desses meios para se comunicarem.
A Polícia Federal, que é a polícia judiciária da União, assim como outros órgãos policiais, se viu forçada a acompanhar as novas metodologias investigativas em ambiente totalmente tecnológico. Daí a necessidade de criação e adoção de novas leis, para que o Poder Judiciário e o Ministério Público tivessem o arcabouço jurídico para o combate ao crime organizado em meio a esse processo evolutivo.
Com o passar dos anos, ocorreu o acúmulo de funções, atribuições ou atividades daqueles servidores públicos. Os gestores da PF, todos com formação acadêmica em Direito, se esqueceram de dar o devido andamento à necessária reestruturação de carreira, para assim disciplinar, legalizar e legitimar os trabalhos produzidos, frequentemente utilizados como provas nos processos criminais, em todas as instâncias.
Curiosamente, as sucessivas administrações da Polícia Federal se viram literalmente perdidas com os novos avanços tecnológicos e consequente evolução da metodologia investigativa.
De forma equivocada, foi baixada a citada IN nº 007/97-DG/DPF, que no Art. 2º traz a seguinte definição: “Entende-se por Operações de Inteligência Policial o conjunto de ações praticadas mediante o emprego de recursos técnicos e, sobretudo, com o desenvolvimento lógico de métodos determinantes do processo de Conhecimento humano, objetivando a identificação de fatos e autoria delituosos”. A IN também instituiu normas e estabeleceu procedimentos de operações de inteligência policial, apesar da inexistência de uma doutrina de inteligência policial. Esta lacuna só foi corrigida dois anos após, com a primeira e única doutrina de inteligência policial, no âmbito da Polícia Federal.
Outro erro gritante que persiste na IN nº 007/1997-DG/DPF é a referência à coordenação e controle de equipes de “análise” e seus integrantes, uma vez que, por direito, até hoje, inexiste a função ou a figura de “analista de inteligência policial”, embora tal atividade exista de fato, ainda que suas atribuições não tenham sido definidas por lei. O Art. 4º da referida IN prevê o seguinte:
§ 2º - As equipes de análise das Delegacias Especializadas ficarão responsáveis pela manutenção do sigilo das operações e, após concluídas as investigações, deverão elaborar o respectivo Cadastro-Caso para implantação do Sistema de Informações Policiais (SIPOL) do DPF;
§ 3º - Para dar funcionabilidade ao disposto no parágrafo anterior, os integrantes das equipes de análise das Delegacias serão credenciadas pela CI/DPF, para consultas aos bancos de dados do SIPOL, na forma do item 36 dá IN 02/94-CI/DPF.)
A Portaria nº 523/89-MPOG nem sequer previu as atividades de “análise” de inteligência policial, e/ou a função conhecida como “analista de inteligência policial” dentro da PF, atualmente atribuída e executada por agentes, escrivães e papiloscopistas. Até porque, como dito, inexistia tecnologia e regulamentação específica para interceptação telefônica e demais sinais.
Esta realidade pode ser confirmada através dos artigos 9º e 10 da IN nº 007/1997-DG/DPF, que menciona a capacitação funcional, aptidão, especialização e qualificação dos servidores policiais que demonstrem o interesse pelo serviço de Operações de Inteligência Policial.
Constata-se uma lacuna da competência e/ou atribuição, devido a sua forma de responsabilidade e complexidade, ante ao que vinham produzindo em ambiente de inteligência policial mediante o uso de interceptação telefônica e demais sinais, e preocupa-nos o aspecto legal, em observância à Constituição Federal/1988, que dispõe:
Art. 37 - A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
( . . .)
II- a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;
É indubitável que a administração pública “esqueceu” ou foi omissa quanto à devida adequação das atribuições desenvolvidas pelos agentes, escrivães e papiloscopistas, concomitante com a evolução dos métodos investigativos, expansão e massificação de unidades de inteligência policial e da persecução (criminal/penal).
A falta de reconhecimento também se observa na exploração, quase sempre desordenada, da extremada dedicação e abnegação destes servidores públicos, ao executarem serviços de grande complexidade e responsabilidade, que exige considerável concentração em ambiente estressante e altamente insalubre. Há um grande desgaste da audição e visão, em virtude da jornada excessiva, no trabalho de ouvir e transcrever ligações telefônicas, em frente ao monitor de computador. Sem mencionar outras doenças degenerativas decorrentes de movimentos repetitivos para digitação.
O não reconhecimento e a inexistência de regulamentação específica para a função de analista de inteligência policial e/ou para a execução de atribuições em análise de inteligência policial e interceptação de sinais, tem afastado bons profissionais e dificultado a cooptação de novos servidores para a execução desse labor. Não há estímulo, reconhecimento ou respeito a direitos trabalhistas sob o regime diferenciado de trabalho, a exemplo da categoria de “operadores de telemarketing”.
Temos como atribuição não reconhecida, a análise e interpretação dos fatos a partir dos dados coletados, processados, investigados e apresentados com juízo de valor através de relatórios e autos circunstanciados, dada a complexidade, responsabilidade e fundamentação das operações a expor para o poder judiciário e consequentemente ao Ministério Público.
As atribuições dos cargos de delegado, agente e escrivão de Policia Federal, estão definidas na referida Portaria 523/1989, a qual por interpretação e adaptação, infere que estes dois últimos cargos devem “colaborar na produção de conhecimentos de informações”, enquanto os delegados de Polícia Federal, como “autoridades policiais”, devem “produzir conhecimentos de informações”.
Outra grande preocupação se refere ao cargo de papiloscopista policial federal. A portaria não faz qualquer menção quanto à sua competência para colaborar, produzir conhecimentos de informações, e/ou executar qualquer atividade de “análise de inteligência policial”. Desta forma, existe a possibilidade de questionamentos na fase judicial das investigações, quanto à competência administrativa e legal das atividades desenvolvidas e produzidas pelos ocupantes desse cargo.
Há também que se observar a competência e o possível vício que poderá acarretar sanção de nulidade. Por analogia ao vício no inquérito policial, o ato administrativo praticado sem que o sujeito (servidor público) tenha as atribuições previstas em lei pode ser atacado, judicialmente, para seu desfazimento. Neste caso, o habeas corpus é remédio jurídico adequado para se impugnar o referido ato (cf. art. 648, III, do CPP). Desta forma, investigados garantiriam sua impunidade, uma vez que as provas colhidas e apresentadas foram produzidas por servidor público sem atribuição legal.
Flagrante está o ilícito praticado e qualificado como desvio ilegal de função de servidor público, que fere os “princípios da legalidade e moralidade administrativa” e contraria a própria “Lex Mater”, cuja matéria também versa o Regime Jurídico Único/RJU (Lei 8.112, de 11/12/1990 e alterações posteriores) no Título IV – do Regime Disciplinar, Capítulo II Das Proibições, Art. 117, incisos XVII e XVIII, ao estabelecer que ao servidor é proibido de “cometer a outro servidor atribuições estranhas ao cargo que ocupa, exceto em situações de emergência e transitórias” e “exercer quaisquer atividades que sejam incompatíveis com o exercício do cargo ou função e com o horário de trabalho”.
A princípio, se deduz que tais situações são expressamente vedadas pelos textos legais e, ainda, que há uma responsabilização clara e objetiva em relação à autoridade competente, que delega aos seus subalternos atividades não condizentes com o cargo. Conforme o caso, pode configurar ato de improbidade administrativa. À luz da Constituição Federal, da regulação infraconstitucional e da jurisprudência o desvio ilegal de função de servidor público titular de cargo efetivo também pode configurar afronta aos “princípios da moralidade administrativa, da legalidade e da exigibilidade do concurso público”, caracterizando o ato de improbidade tipificado na Lei nº 8.429/92.
Frente ao mandamus constitucional previsto no Art. 7º, inciso V, o servidor deve perceber um salário condizente com a extensão e a complexidade laboral. A não observância desta regra pela Administração Pública poderá ser considerada crime contra a organização do trabalho e contra o Estado Democrático de Direito. Também há que se falar dos DANOS ocasionados pela função desviante, que não é só o prejuízo material que a Administração Pública lhe impinge, mas também o sofrimento moral (e/ou coação moral quando imposto de forma autoritária), de diuturnamente realizar o trabalho de outro servidor que possui investidura no cargo para realizar tais tarefas.
O desvio de função, caso não se trate de situações emergenciais, transitórias e/ou especificamente remuneradas, viola o princípio da legalidade, que implica impor a servidor público atribuições diversas das correspondentes ao cargo do qual ele é titular. De acordo com a clássica lição de Helly Lopes Meirelles, "na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza".
Se um agente público comete ao seu subordinado, sem amparo normativo, o exercício de atribuições não autorizadas por lei estará ferindo o princípio da legalidade. Ao cumprir a ordem, de forma consensual, o servidor em desvio de função também o afronta, porquanto estará desempenhando atividades sem respaldo legal.
Por derradeiro, em relação a responsabilidade e obrigação que o servidor público tem para com toda a sociedade brasileira, vale a pena transcrever o enunciado do Ministro do STF, Ayres Britto, de 01/12/2010, em votação no plenário do Mandado de Segurança 26.955/DF:
Mandado de Segurança 26.955 Distrito Federal
VOTO
O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO – Senhor Presidente, eu vou me filiar ao entendimento da eminente Relatora. Estou aqui a buscar na Constituição o fundamento para essa idéia-força de que os cargos públicos são criados por lei em número certo, com denominação própria, funções especificadas – funções como plexos unitários de atribuições, na linguagem de Celso Antônio Bandeira de Mello.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) – Como feixe de atribuições para as quais você se concursa e assume.
O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO – Exatamente. Vale dizer, o cargo é um todo proindiviso nesse sentido, os seus componentes, portanto, dados de sua própria compostura jurídica, são a denominação, o número, um vencimento e o que a doutrina tem chamado de atribuições, enquanto plexo de funções unitárias.
Ainda na linguagem de Celso Antônio, os cargos são as mais simples e indivisíveis unidades de competência. Segundo o Professor Celso Antônio ainda, é necessária, sim, a lei – ela se faz necessária – para a criação dos cargos com todo esses componentes. Eu estou lendo aqui “Curso de Direito Administrativo”, 25ª edição, página 251, em que Sua Excelência de fato entende que a lei é a única via formal jurídico-positiva de criação de cargo público.
A constituição não deixa as coisas assim tão claras, mas entendo que, numa interpretação sistemática dela, Constituição, a partir do artigo 37 e do princípio da legalidade, que não por acaso é o primeiro dos princípios regentes de toda a atividade administrativa, é possível concluir que efetivamente, sem lei, não pode haver mudança nas atribuições que nasceram com o cargo e para cujo desempenho se deu o concurso público.
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